Você só deve algo a você mesma

Quando eu era criança, cresci ouvindo minha mãe dizer que começou a trabalhar com meus avós aos 14 anos, porque queria ter seu próprio dinheiro. Por influência dela, acabei seguindo um caminho parecido e antes dos 14 anos já estava amolando meu avô para me dar trabalho. A resposta dele é que antes de mais nada eu teria de fazer um curso de datilografia, pois até então não tinha nenhuma habilidade para oferecer.

Nem bem completei 14 anos e lá fui eu para o curso de datilografia – provavelmente uma das melhores coisas que fiz na vida, não porque era legal, mas porque me é útil até hoje. Concluído o curso, meu avô me contratou como secretária em meio período. Ao receber meu primeiro salário, agradeci meu avô, que me devolveu a seguinte lição: “Não me agradeça. Você trabalhou e está recebendo pelo seu trabalho. É uma relação comercial, não pessoal.”

O trabalho com meu avô durou pouco menos de um ano porque, infelizmente, começou a atrapalhar a escola – que deveria ser minha prioridade naquela época. Alguns anos depois, já no primeiro ano da faculdade de Jornalismo, fui trabalhar em um jornal diário, onde comecei como estagiária e saí como subeditora.

Foram quase 12 anos de muito aprendizado, de muitos finais de semana, feriados e fins de ano trabalhando, enquanto todo mundo que eu conhecia estava descansando e se divertindo. Perdi muitos amigos pelo caminho, que não entendiam a minha dedicação e lealdade com uma empresa que atrasava pagamentos, acabava com a minha saúde e não tinha absolutamente nenhum respeito por seus funcionários.

Minha resposta variava entre “eu assumi um compromisso e tenho que ir até o fim”, “eles contam comigo”, ou ainda “eu amo fazer isso”. A real é que eu até acreditava em tudo isso, mas a grande verdade é que eu me sentia em débito com a oportunidade que o jornal havia me dado quando eu era uma estudante de Jornalismo crua e sem malícia. E a única forma de pagar essa “dívida” era com essa devoção cega que me levou, inclusive, a ir trabalhar em um plantão de feriado no dia em que meu avô morreu. Porque eles contavam comigo.

Levou tempo para eu aprender que as coisas não eram bem assim. Como eu disse, foram quase 12 anos lá dentro. Quando eu finalmente surgiu uma nova oportunidade de trabalho – com um horário regular, sem plantões de fins de semana, feriados e fim de ano, com salário em dia, a chance de aprender coisas novas e finalmente a possibilidade de ter alguma qualidade de vida, eu balancei.

Nos meses que antecederam minha saída do jornal – sim, eu saí de lá -, vários colegas que entraram muito depois de mim estavam iniciando novas fases em suas carreiras, o que me motivou ainda mais. O grande problema era vencer a minha própria crença – e de algumas pessoas que trabalhavam ali – de que o jornal havia me feito. Eu só era a profissional que era porque tinha tido uma chance ali.

Foi aí que voltei a pensar no meu avô e naquela lição que ele havia me dado. “Não me agradeça. Você trabalhou e está recebendo pelo seu trabalho. É uma relação comercial, não pessoal.” Na minha relação comercial com o jornal, eu trabalhei pra cacete, sem pestanejar. Fazia o meu trabalho e ainda ajudava quem precisasse. E foi por isso que aprendi: porque estava disposta a fazer além do que era necessário. Porque enchia o saco dos editores e de repórteres mais velhos para que me ensinassem.

Isso tudo me fez pensar muito na forma como nos relacionamos com as oportunidades que temos na vida.

As oportunidades existem, isso é fato. Se você não consegue enxergá-las, é porque você não está preparado para elas. O que fazer, então? Vá estudar, ler, viajar. Vivencie o máximo de experiências possíveis, busque referências, aprenda tudo o que puder e tente ir além da superfície. O mundo já é superficial demais para a gente ser só mais um.

E quando as oportunidades surgirem, seja o melhor que você puder. É uma relação de troca: dedique-se ao máximo e você poderá receber muita coisa em troca – não só financeiramente, porque nem sempre isso é possível, mas em experiência, que dinheiro nenhum compra.

Moral da história: sentir gratidão é importante e dá pistas do tipo de pessoa que você é. Mas acreditar que você deve tudo a uma oportunidade que teve algum dia, isso é errado. Um trabalho não faz de você quem você é, não faz seu nome e sobrenome. Adquirir experiência e ser reconhecido por algo que você fez ou faz são consequências de quem você é, do que você já batalhou, aprendeu e viveu para chegar até aqui. São consequências da sua dedicação a um projeto, um trabalho, um objetivo.

Mais uma vez: seja grata/o às oportunidades, mas lembre-se que as oportunidades só apareceram para você e resultaram em algo bacana porque você se dedicou. No final das contas, a única pessoa para quem você deve algo é para você mesma/o. Isso, sim, é um puta estímulo.

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