Nossas pequenas violências de gênero do dia a dia

Eu pensei muito antes de escrever este texto. Afinal, o que eu poderia acrescentar às histórias de outras mulheres que li e ouvi nos dias que sucederam ao horror vivido por uma garota de 16 anos, violentada por 30 homens e exposta na internet, para quem quisesse ver?

Por outro lado, conclui que este não é o momento de ficar calada. Porque toda vez que nós, mulheres, nos silenciamos diante da violência de gênero – seja ela física ou psicológica, reforçamos a crença de que tudo é permitido.

A caminho dos 38 anos, já vivi algumas histórias constrangedoras nesse mundo onde homens pensam que podem tudo. Teve o tarado do cinema, que virou um texto engraçadinho passados alguns anos depois do ocorrido, mas que na hora foi horrível. Mas não foi a única história que eu vivi.

Toda vez que eu ando de trem ou metrô, por exemplo, eu sempre dou um jeito de ficar encostada – nem que seja na porta, quando não consigo me sentar. A “estratégia” permite que eu tenha uma visão geral e possa me proteger caso alguém se aproxime. Quando meu cabelo está comprido, uso ele preso em um coque, porque já aconteceu de um cara passar a mão no meu cabelo e puxá-lo para cheirar.

Eu poderia dizer que, quando isso aconteceu, fiz o maior escândalo, mas não. Era um sábado de manhã e eu estava a caminho de um curso. Tudo o que eu consegui fazer foi levantar, me afastar e na estação seguinte trocar de vagão. Isso porque, por mais forte e briguenta que a gente seja, quando essas coisas acontecem a gente perde a reação. E dependendo do lugar, a gente não sabe se o outro está armado, pronto para nos machucar. A gente está sozinha e faz o que dá. Isso se chama medo e faz parte do dia a dia de qualquer mulher.

De todas as histórias que vivi nestes “pequenos momentos de violência de gênero” do dia a dia – coisas que acredito ter vivenciado somente porque sou mulher -, a que mais marcou foi uma que aconteceu quando morei nos Estados Unidos. Eu nunca fui do tipo baladeira, nunca me vesti de forma provocante e, ainda que fosse a mais baladeira e a mais provocante de todas, nada daria a um cara o direito de me tratar como um objeto.

Sempre que eu saía com minhas amigas, íamos ao mesmo bar, onde fizemos amizade com o pessoal que trabalhava ali. Um dia, deixei minhas amigas para ir ao banheiro – eu nunca fui de ir ao banheiro em bando, mas se você quer realmente saber por que as mulheres vão juntas ao banheiro, saiba que é por proteção -, e quando estava voltando, um cara que eu nunca vi na vida me abordou. Começou a falar que era a despedida de solteiro do amigo dele e que o tal tinha se encantado por mim e queria me conhecer. Eu disse não e saí andando.

O cara me puxou, e continuou falando, chegou a me oferecer dinheiro para eu ficar com o amigo dele. Eu achei um absurdo e, nessa hora, minhas amigas vieram atrás de mim. Quando perceberam o que estavam acontecendo, chamaram os seguranças e os caras foram levados para fora – xingando a gente de todos os nomes possíveis e imagináveis e ameaçando a gente.

No final da noite, os seguranças – que eram nossos amigos – levaram a gente até o carro, tamanho o medo que a gente ficou daqueles caras.

Pouca gente que me conhece sabe dessa história, porque é o tipo da coisa que eu não gosto nem de lembrar. Nunca deixei de fazer nada por medo (apesar de ele ser uma companhia constante), mas sei que é preciso estar alerta o tempo inteiro. Porque basta você ser mulher e estar viva para que a possibilidade de coisas deste tipo possam acontecer com você, não importa onde ou quando.

A conclusão que eu chego é que não só eu, mas absolutamente todas as mulheres que eu conheço já passaram por uma ou várias situações humilhantes, pelo único e simples fato de serem mulheres. Todos os dias somos desrespeitadas de alguma maneira, tudo por conta da cultura machista que segue sendo perpetuada.

Se você acredita que feminismo é uma luta pela “superioridade” feminina, está equivocado(a). O feminismo nada mais é do que uma luta por condições igualitárias aos gêneros, o que inclui respeito e oportunidades, só para começo de conversa. Acreditar que ser bom ou superior em algo está ligado ao seu gênero é um erro feio, erro rude. A gente é muito mais do que aquilo que carregamos (ou não) no meio das pernas. E agora é o momento perfeito para que as pessoas entendam isso de uma vez por todas.

Para quem acredita que a garota violentada por 30 caras ou qualquer outra vítima de violência de gênero “pediu” para sofrer a violência, aí vai um recado: ela podia estar andando pelada no meio da rua. Ninguém, absolutamente ninguém tem o direito de tocar em um fio de cabelo dela. Defender ou justificar os atos de um estuprador (ou 30) é ser conivente com a cultura do estupro, além de ajudar a reforça-la e perpetua-la. Estupro é um crime e transformar a vítima em culpada não ajuda ninguém.

Não é não.

**Image by pikisuperstar on Freepik



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