Beatles, Ramones e Queen. Se a pergunta ao menos fosse sobre as três bandas que mais amo, a resposta estaria na ponta da língua. Mas livros? Como escolher apenas três, se cada um deles faz parte de quem eu fui, de quem eu sou e de quem ainda quero me tornar? Digo a mim mesma, no entanto, que isso é um desafio. Se fosse para ser fácil, então teria outro nome.
Tento resolver a charada com a ajuda da minha estante, abarrotada de não ficção. Sempre fui da opinião que nossos livros revelam muito sobre nós. Cada título é um vislumbre da nossa alma, dos nossos sonhos e até das nossas lembranças. Um presente de alguém que amamos, lugares que queremos conhecer, pessoas que admiramos… Está tudo ali, concentrado em páginas e dividido em capítulos.
Em meus pensamentos, me consolo jurando a mim mesma que eleger três livros não significa amar menos todos os outros, ou desonrar o que vivi com cada um deles — especialmente aqueles “sobre a escrita”, que me ensinaram “como escrever bem” ou “como se encontrar na escrita”. Afinal, ler também é, acima de tudo, uma jornada para dentro de nós mesmos. Suspiro.
A memória me leva a Zen Shorts, de Jon J. Muth. Em 2005, quando esse livro infantil foi lançado, eu era au pair nos Estados Unidos e cuidava de três meninos. Foi um dos períodos mais solitários de minha vida, longe da minha família e imersa em outra cultura. Eu lia bastante para as crianças, e muitas vezes me encontrava com um sábio panda gigante narrando contos clássicos do budismo.
Meu favorito é o do mestre que ajuda uma senhora rica a pular uma poça de lama, mas não é agradecido por sua ação. Ele avança em sua jornada com seu aprendiz, que depois de algumas horas ruminando pergunta ao velho monge se a ingratidão não o chateou. A resposta eu trago comigo até hoje: “Eu deixei a mulher há horas. Por que você ainda está carregando-a?”. É isso: nossos fardos são uma escolha.
Sigo viagem com Sônia Bridi, que então me leva ao outro lado do mundo com seu Laowai. Ali, ela narra as experiências que viveu como correspondente na China. São tantas cores, aromas e sabores, que percorrer suas páginas é como reencontrar uma velha amiga. É, também, lembrar da minha adolescência, quando tive uma fase em que era obcecada pela história e cultura chinesa.
Mesmo que eu nunca realize meu sonho de algum dia visitar a China, enxergar o país pelas palavras de Sônia aquece o meu coração. E também traz um olhar além daquela versão única que vemos repetidamente na mídia. Coloca nomes, vidas e histórias no cotidiano daqueles 2 bilhões de habitantes, ou na triste política do filho único que aprendíamos na escola.
Tão constante quanto os livros, a música dos Beatles também esteve presente em minha vida desde sempre. Não bastasse as próprias letras serem narrativas por si só sobre Eleanor, Molly ou Loretta, entre outros personagens, elas também têm os bastidores revelados por Hunter Davies em As Letras dos Beatles — A História Por Trás das Canções.
Presente do meu marido, suas páginas concentram a trilha sonora da minha vida, e me levam às minhas memórias favoritas — algumas delas vividas ao lado dele. Como aquela vez em que chorei dentro do ônibus rumo a Abbey Road, enquanto escutava a história de uma fã ansiosa em visitar a rua do mítico estúdio. Para outra passageira, ela contava que só estava ali porque uma tia deixou para ela um dinheiro de herança, com um bilhete que dizia: vá realizar o seu sonho.
Olhando para mim pela lente dos meus livros, recentemente fiz um trato comigo mesma: ler pelo menos uma obra de ficção por mês, entre todas as outras de não ficção que costumam ocupar meu tempo e atenção. Foi assim que me vi de volta à trilogia O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, exatos 20 anos depois de nosso primeiro encontro.
Lá no começo de 2002, eu havia acabado de concluir a faculdade de Jornalismo. O primeiro filme, dirigido por Peter Jackson, tinha estreado há pouco no cinema, e eu estava certa de que não aguentaria sei lá quantos anos para saber o que iria acontecer. Estranho olhar para trás e perceber que, recém-formada, eu também não fazia ideia para onde minhas decisões me levariam. Eu estava diante da minha própria jornada.
Em nosso reencontro, enquanto Frodo trilha seu caminho para destruir o Um Anel, eu sigo aprendendo a escolher os fardos que quero carregar, as histórias que quero contar e os sonhos que quero realizar. Em comum, minhas versões separadas por duas décadas continuam em busca de algo que sinto que somente as palavras podem oferecer. Pode ser conhecimento, pertencimento, propósito ou plenitude.
Ao chegar aqui, percebo que escrever, assim como rumar para a Montanha da Perdição, é uma jornada árdua e, em muitos momentos, solitária. Os livros que nos acompanham são como os membros da Sociedade do Anel: cada um tem um papel a desempenhar em nossa trajetória, por menor que seja. No final das contas, vale para a escrita, assim como para a leitura, o ensinamento do mago Gandalf: “Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado”.
*Texto escrito para o Clube de Escrita Criativa e Afetuosa, de Ana Holanda
**Foto: Livros citados no texto (Arquivo pessoal/Amanda de Almeida)