Todos os dias, antes de cada sessão, ela repete o mesmo ritual: verifica se a sala está limpa, checa se a maca está protegida, assim como outros objetos próximos a ela, como uma luminária presa ao balcão. Confere se o material está completo, item por item: luvas e agulhas descartáveis, álcool, borrifador de água, tintas e máquina. E a música.
A música tem uma importância enorme para criar a atmosfera adequada durante um procedimento tão delicado. Afinal, as pessoas sangram sobre aquela maca, e a música tem um poder tanto de anestesiar aqueles minutos – às vezes horas – quanto de tornar a dor ainda mais dilacerante.
“Eu gosto de músicas que não deixam a pessoa agitada, numa pegada mais indie. O som me ajuda a focar e até parece que faz o tempo passar mais rápido”, suspira a moça de aparência delicada, quase infantil, apesar de seus vinte e poucos anos.
Finalizado o ritual, sou chamada a entrar na sala. Em uma das paredes, vejo centenas de desenhos que também estão por aí, marcados na pele de alguém. Alguns deles com um significado, outros com nenhum. A maioria, entretanto, parece ter por trás uma história importante para quem escolheu torná-los eternos em seus corpos: uma palavra ou frase inspiradora, uma data marcante, traços que lembram, celebram ou registram.
“Aquela Kombi com o Fusca”, aponta, “tem uma história que eu gosto muito. Meu cliente contou que aquele era o Fusca que ele tinha herdado do avô, que por sua vez ganhou o carro do Silvio Santos”, conta.
Antes de me posicionar na maca, ela pega o desenho escolhido e coloca sobre minha pele, para confirmar o lugar e a posição. Depois, usa um barbeador descartável para remover a penugem, deixando mais lisa a área que receberá a imagem, e passa água e álcool para higienizar.
O odor etílico enche o ar, enquanto ela passa o transfer e “copia” o desenho para a pele. Nesse momento, minha mente embarca em um voo sem escalas para a minha infância. “É como se fosse um mimiógrafo”, comenta ela, me trazendo de volta ao momento presente. Concordo.
Uma última alongada e cada uma se posiciona em seu lugar: eu na maca, ela na cadeira. Dali adiante, a música será acompanhada pelo incessante som do motorzinho das máquinas, ora com uma agulha, ora com mais.
Trajetória recente
Assim é o dia a a dia de Carla Crisper, uma especialista em transformar histórias em obras de arte que circulam por aí.
Com uma carreira relativamente recente, há 4 anos ela agarrou a oportunidade de se dedicar em tempo integral à uma nova profissão, que até então era apenas um hobby. Guardou o diploma em Administração de Empresas e trocou o trabalho em uma empresa pelas agulhas e tintas. Somente há 2 anos abriu seu próprio estúdio, o Inkground Tattoo.
Carla também está a milhas de distância do estereótipo dos tatuadores tradicionais: pequena, aos 27 anos ela mais parece ter recém-saído da adolescência. Tem pouquíssimas tatuagens, a maioria nas pernas – três delas feitas por ela mesma. E é justamente sua aparência que acaba criando alguns obstáculos.
“Uma vez fui a um evento de tatuadores e queria comprar uma máquina de um modelo específico. Acho que, por ser mulher, não ter muitas tatuagens expostas e ter cara de criança, ou seja, não parecer com o que as pessoas imaginam ser uma tatuadora, já rolou um preconceito. Quando pedi para ver a máquina, o vendedor me mostrou outros modelos – nenhum que eu queria. Pedi novamente para ver o modelo que eu procurava. Ele me disse :’Tá exigindo demais, quero ver fazer a tatuagem de verdade. Quero ver na pele’. Na hora, eu nem soube o que responder, fiquei completamente sem graça, simplesmente saí andando. Mas, no final, consegui comprar em outro lugar”.
De personalidade introspectiva, Carla teve de aprender a superar sua própria timidez para se firmar no mundo dos tatuadores. Com um estilo que combina simplicidade e elegância, ela tornou-se especialista em pontilhismo. O traço fino e delicado é uma espécie de marca registrada, uma assinatura que já é reconhecida internacionalmente.
A cada nova tatuagem, Carla aceita o desafio de marcar para sempre o corpo de alguém. Só dispensa o trabalho se o estilo pedido pelo cliente fugir demais ao seu, como o realista, que ela não faz.
“Hoje em dia o que as pessoas mais tatuam são palavras como família, amor, resiliência, fé… Não peguei a fase das estrelas, mas hoje o desenho mais pedido é a flor de lótus ornamental”, conta. Caso você esteja se perguntando, a flor em questão simboliza a pureza do corpo e da mente, entre outras coisas.
Reconhecimento profissional
O reconhecimento profissional veio mais rápido do que ela esperava. Natural de Santana, no interior do Paraná, ela está próxima do limite de 5 mil amigos no Facebook. “É mais gente do que o número de habitantes da cidade onde nasci”, compara.
Apesar de ter saído de lá há muito tempo, Carla ainda volta de tempos em tempos para visitar o pai… e tatuar os moradores. “Já tatuei metade da cidade, em quase todos foi a primeira tatuagem. Lá todo mundo se conhece e, quando estou lá, eles sempre me procuram com seus pedidos”, sorri.
Foi lá mesmo, em uma amiga de infância com quem costumava brincar, que fez uma tatuagem que ainda a emociona. “Ela e o marido tinham menos de 1 ano de casados quando ele morreu em um acidente de moto. Depois de algum tempo, me pediu que tatuasse em sua nuca a frase ‘Ainda estou usando o sorriso que você me deu’”.
Carla desenvolveu uma habilidade enorme para ouvir as pessoas, seus medos, expectativas, motivações. Por trás de cada tatuagem, há sempre uma pessoa que carrega um universo de sentimentos. Ao som da música misturada com o motorzinho da máquina, eles são transformados em uma arte que conta histórias na pele.
**Foto: Tatuagem feita por Carla Crisper durante esta conversa (Arquivo pessoal/Amanda de Almeida)