De tampa ou de gomo? Ela sempre repetia a mesma pergunta, várias e várias vezes após o almoço, até que todos estivessem servidos. Todos os dias, quando era época de laranja Bahia, ela levantava-se de seu lugar – a cabeceira da mesa, como cabia à matriarca – e pegava uma para cada.
Com a faca na mão, começava o trabalho de descascar as laranjas ao gosto do “freguês”.
Quem pedia de gomo, via a faca talhando os dois extremos da fruta, nas partes de cima e baixo. Depois, traçava linhas verticais em cortes superficiais, delimitando os gomos ao redor da casca. Por fim, puxava cada pétala, como se recitasse bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer…
O último passo era enfiar o polegar no centro da laranja, por cima, para abri-la. Depois, entregava para quem estivesse na fila para recomeçar mais uma vez com a pergunta: de tampa ou de gomo?
Vez ou outra, só pra mudar, alterava a ordem dos fatores, mas nunca o resultado: de gomo ou de tampa?
Mesmo sabendo a resposta, na maioria das vezes, ela continuava a perguntar. Quem sabe ela esperasse que mudassem de ideia? Ou talvez a pergunta, assim como a laranja descascada, fosse mais uma das formas que ela nos demonstrava seu amor?
De tampa, vó.
Quase sempre essa era a minha resposta.
Hoje arrisco dizer que era porque eu ficava encantada de vê-la desafiando-se a descascar a laranja inteira, transformando a casca em um único fio. E entendo que era mais um exercício de paciência do que destreza. Talvez ambos.
Devagar e concentrada, ela movia a faca enquanto girava a laranja com a outra mão.
A casca ia saindo em espiral, como se não tivesse fim. Às vezes, ela se partia, mas quase sempre, não. Criança, talvez eu não reconhecesse a poesia em seus movimentos, como reconheço hoje.
O que eu queria mesmo era aquela parte branca entre a casca e o miolo, que sempre ficava quando a tampa era pedida. A espera finalmente acabava quando a faca encontrava o meio da laranja separando-a em duas metades que me eram entregues. Mais uma vez, acompanhada da pergunta: de tampa ou de gomo?
Nem sempre era época de laranja Bahia, mas sempre havia uma fruta a ser descascada por ela após o almoço. Mexerica, ponkan, morgote, manga. Mas só as laranjas vinham acompanhadas da oportunidade de escolher entre tampa e gomo.
Hoje, sou eu quem descasca minhas laranjas. Ainda de tampa. Ainda deixando os branquinhos entre a casca e o miolo. E, como ela fazia, tentando tirar a casca sem quebrar, exercitando a concentração, a paciência e destreza que eu gostaria de ter.
**Foto: Dúzias de Laranja Bahia no Varejão. Foram elas que inspiraram este texto (Arquivo pessoal/Amanda de Almeida)